Sparrings: de coadjuvantes a protagonistas

14/08/2017

Por Paulo Roberto Godinho

Para muitos, a expressão sparring soa quase pejorativamente, qualificando aquele lutador que não se destacou como protagonista para servir de base a treinos de outros lutadores mais qualificados e famosos. A história me mostra importantes sparrings que saíram do anonimato dos ginásios para o estrelato dos títulos mundiais.

Muhammad Ali foi muito mais do que um grande competidor entre os pesos pesados; foi um ser humano fora de série que fez o mundo entender melhor o boxe e as pessoas negras. Angelo Dundee foi o treinador de Ali por toda a sua carreira, onde pontificaram fotógrafos, assessores de imprensa e o médico dr. Ferdie Pacheco, além de um quadro de sparrings selecionadíssimos. A prova real é que dois deles, Jimmy Ellis e Larry Holmes, chegaram a ser ambos campeões mundiais na categoria dos pesados.

Jimmy Ellis era conterrâneo de Ali e ambos vieram de Louisville (estado do Kentucky). Ellis acabou integrado à equipe de Angelo Dundee no Ginásio da Rua 5, em Miami (Flórida), sendo por algum tempo o sparring preferido de Ali. Em 1965, após a revanche com Sonny Liston, Ali começou uma turnê pelo mundo fazendo exibições com seus sparrings, Jimmy Ellis e Cody Jones, nos meses de julho e agosto, em Porto Rico, Suécia, Inglaterra e Escócia.

Título cassado

Em 1967 cassaram o título de Muhammad Ali e a Associação Mundial de Boxe (AMB) realiza um torneio entre os melhores pesados da época. Jimmy Ellis ganha esse título vencendo seguidamente Leotis Martin, Oscar Bonavena e Jerry Quarry. Em 1968, Ellis defendeu seu título contra Floyd Patterson e ganhou por pontos em 15 roundes. Ali amargava o exílio em seu próprio país, e seu ex-sparring era o campeão mundial AMB dos pesados. Muhammad Ali retornou ao boxe em 1970 e no Ginásio da Rua 5, Angelo Dundee contratou um jovem sparring que tinha altura, disposição e força. O nome dele? Larry Holmes.

Em 1973, Holmes se profissionalizou e, em 1978, sagrava-se campeão mundial dos pesados, ganhando de Ken Norton em 15 tempos. Holmes faria uma carreira linda, chegou a ficar invicto durante 12 anos - nos quais ostentou 48 triunfos seguidos, com 34 nocautes. A essa altura Muhammad Ali já havia se retirado definitivamente do boxe.

Existiram, já em tempos mais modernos, ótimos boxeadores que, na falta de melhores lutas, se habilitaram a sparrings de grandes lutadores. Fico com Zab Judah para meu exemplo clássico. Ele é um craque boxeando, mas faltava-lhe pegada para consagrá-lo por inteiro. Judah, por mais de uma vez, foi sparring do fulgurante Floyd Mayweather Jr. Imaginem uma "luva" entre os dois? O ginásio deveria cobrar ingresso, tal a arte e a habilidade desta dupla.

Preservar a estrela

A tarefa de um sparring é boxear conforme pede a equipe técnica dos lutadores com quem ele está trabalhando. Ele é o companheiro de treino que deve poupar a "estrela" de golpes mais duros. Lembro-me de artigos que li do dr. Ferdie Pacheco, médico das equipes treinadas por Angelo Dundee, que escolhia para sparrings de Muhammad Ali lutadores de muita agressividade. O dr. Pacheco declarava que Ali apanhava muito mais nos treinamentos do que nas próprias lutas.

Nunca entendi esse procedimento de Dundee; treino é feito para se desenvolver qualidades técnicas e táticas. E em se tratando de um virtuose como Ali, ele deveria ser tão bom em treinos, que Dundee acreditava que ele deveria estar brincando com os sparrings; por isso exigia destes uma agressividade extra. E o "fenômeno" se torna ainda maior quando se vê que Jimmy Ellis e Larry Holmes estiveram entre aqueles que Angelo Dundee pedia para bater de verdade no campeão.

Entendo Floyd Mayweather pai contratar Zab Judah para ser sparring de seu filho. Reunindo no mesmo ringue em seu ginásio, dois professores na arte de lutar boxe. Boxe é arte e não pancadaria. Certamente Angelo Dundee nunca entendeu bem o diamante que teve nas mãos treinando, de 1964 até 1981. O dr. Ferdie Pacheco deixou a equipe de Muhammad Ali (em 1977) depois da luta contra Ernie Shavers, quando Ali ganhou por pontos depois de sofrer um castigo terrível.

Diagnóstico ruim

Pacheco descobriu depois da luta que os rins de Ali estavam se deteriorando de verdade, e já estava convencido desde a terceira luta contra Joe Frasier (1975) em Manila; que Ali corria sérios riscos de sofrer danos irreversíveis no cérebro se não largasse o boxe. Enviou os exames médicos para Ali, Veronica Porsche (sua mulher à época) e para o empresário Herbert Muhammad que, a exemplo do treinador Angelo Dundee, ignoraram o alerta. Diante disso, o dr. Ferdie Pacheco teve a certeza de que era a hora de deixar a equipe. Infelizmente, o médico estava certo.

Sendo um esporte de alto risco, o boxe não pode deixar de ser monitorado por médicos competentes, por ter sparrings conscientes das suas importâncias no sucesso daqueles que os contratam para treinar e ter em mente que treino é treino, luta é luta.

(*) Texto original de Paulo Godinho publicado já há alguns anos, mas que se mostra bastante atual para nossa reflexão